sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Duas Mexericas


Depois de dois anos ininterruptos de trabalho duro e pesado e de gigantescas tribulações na vida, chegou o tempo de férias. Dias difíceis ficaram pra trás. A hora de curtir a vida chegou. Para um guerreiro isso significa que é hora de focar em treinamento. Esse é o meu tempo. E escolhi passar esse tempo fazendo o que mais gosto de fazer, que é treinar Ninjutsu. Escolhi fazer isso com uma pessoa muito especial para mim, Patrícia, minha namorada! “Vamos ao Japão...” disse eu, e me engajei nesse projeto pessoal. A luta para planejar e viabilizar essa viagem foi dura, mas por fim tudo estava pronto e era hora de começar outra luta: A execução.

Objetivos, metas, medos e obstáculos

Apesar de ser algo muito normal para mim, pois foi o que fiz nas minhas horas vagas nos últimos 17 anos, também era um momento especial, pois eu necessitava alcançar alguns objetivos pessoais:

  1. Um objetivo auto imposto era o Sakki Test no Japão. Eu poderia ter optado por um caminho mais rápido ou alternativo, mas eu necessitava dessa confirmação lá na terra do sol nascente. Eu precisava saber se quando eu realmente estivesse frente-a-frente com todos os meus medos e temores eu estaria apto para encarar a “morte” e sobreviver.
  2. Outro objetivo era comprovar tecnicamente para pessoas que não me conheciam bem pessoalmente, mas conheciam essa arte tão a fundo quanto é possível para um ser humano conhecer, de que eu merecia a graduação emérito que havia recebido de meu professor.

Com esses dois grandes fardos parti para o Japão.

A jornada

A viagem de mais de trinta horas foi cansativa, porém eu estava tranquilo, pois sabia que o mais difícil viria pela frente. Enfim chegamos ao Japão e fomos treinar. A primeira aula foi diferente. Eu já havia estado no Japão em 2008 e frequentado várias aulas do Soke e dessa vez minha primeira aula seria mais uma aula de Sensei Hatsumi. Devo dizer que mais uma vez esse senhor me surpreendeu, pois foi uma aula atípica, quase não houve treinamento e foi mais uma conversa, onde ele mostrou uma coleção de relíquias recém-adquiridas, como armas e artefatos históricos e por fim haveria um Sakki Test. Eu havia decido esperar alguns dias de treino para me apresentar para esse exame. Um praticante local se apresentou para o teste e falhou. Foi a primeira falha que eu havia presenciado. E não posso dizer que isso me deixou tranquilo, mas os dias foram passando e os amigos foram chegando, Serrano Sensei da Espanha, Juan Manuel Gutierrez da Argentina e muitos outros foram me deixando mais confortável para me apresentar para o famigerado teste.

A morte eminente

Com quase uma semana de treinamento decidi que era hora de me apresentar. E quando chegou a aula em questão eu estava nervoso. Treinei com minha namorada e não consegui sequer me concentrar em uma só técnica. Optei por ser apenas Uke (que recebe as técnicas) para tentar esvaziar a minha cabeça de medos, anseios e preocupações, mas como parar de me preocupar? Pois se eu fracassasse, muito do caminho percorrido até agora teria um sentimento de esforço em vão. No momento final da aula o Soke pergutou se haviam pretendentes ao Sakki Test. Apresentamos, eu e um colega argentino. Ele foi escolhido para ser o primeiro. Sentei em um local separado de todos os outros praticantes e fechei os olhos. Um silêncio fúnebre se fez no Honbu Dojo. Esperei o teste de meu colega argentino. Ouvi o som da Shinai (espada de bambu) estalando e a voz do Soke pronunciando a sentença: “No. Next!” O argentino havia falhado. Durante a minha estadia no Japão só haviam ocorrido dois Sakki Test e ambos haviam falhado. Abri os olhos e todos no recinto me olhavam, me levantei e caminhei até o local indicado para me apresentar à “morte”. Durante essa caminhada toda minha vida marcial passou pela minha mente. Todas as risadas e choros que permearam meu caminho se enrijeceram em meus músculos. Todas as lembranças daqueles que me apoiaram e dos que me fortaleceram tentando me derrubar povoaram minha mente. Pronto, cheguei ao local determinado para o teste. Posicionei-me perante a plateia que era formada por um grupo muito grande de praticantes, haviam iniciantes, mas também haviam mestres de todas as partes do mundo presentes. O meu carrasco seria meu grande amigo Sensei Serrano. Fechei os olhos e ali estava eu, me entregando para a “morte”. Logo quando fechei os olhos me senti desequilibrado e esse desequilíbrio me fez rolar. Rolei! Quando olhei para a posição onde eu estava anteriormente Sensei Serrano estava parado com a espada ainda erguida. Ainda não era a hora. Voltei à posição inicial e novamente me desequilibrei emocionalmente e me esquivei de nada. Voltei novamente à posição e respirei fundo. Um vazio completo tomou minha mente e nada mais havia a não ser eu. Não havia mundo ao meu redor, apenas eu. Senti-me calmo e capaz. Senti-me apto para vencer qualquer desafio eminente. E foi nesse momento em que eu me sentia só em meu próprio mundo. Nesse instante senti um lampejo claro como o sol. Foi um sinal inequívoco de que eu estava em perigo. Não havia a menor dúvida: Alguém tentava me matar! Nesse momento esquivei com todas as minhas forças e com o coração ainda na garganta abri os olhos. A espada havia decido. Eu estava vivo e ileso. A voz do Soke soou: “OK!”. Uma salva de palmas de todos os presentes substituiu o até então silêncio fúnebre. E eu percebi que havia passado no Sakki Test. Ainda eufórico sentei-me e o colega argentino teve outra chance e passou. A aula acabou e todos vieram me cumprimentar. Era hora de comemorar.

A luta continuou

Eu ainda tinha uma missão. Que era mostrar para os regentes da Bujinkan mundial que eu era apto tecnicamente para níveis mais alto que um quinto dan. Daí o treinamento seguiu. Os dias foram passando e eu me esforçava ao máximo para entender os ensinamentos e tentar replicá-los através de técnicas eficientes e ao mesmo tempo equilibradas. Os treinamentos foram passando e também os dias. Tive várias oportunidades de mostrar minhas habilidades e o fiz como deu. Uma vez o nervosismo foi maior e a técnica fora medíocre, mas na maioria das vezes meus anos de treinamento afloraram em meio às técnicas. Porém o tão esperado reconhecimento não vinha. Por várias vezes fui elogiado e os grandes mestres, e até mesmo o Soke, me questionavam sobre meu país de origem e meu tempo de treino. Esforcei-me muito para tentar me manter em uma postura humilde e continuar a demonstrar quem eu era através de minhas técnicas e movimentos.

A grande festa

A nossa viagem ao Japão seria encerrada por um último grande evento: O Daikomyosai. Essa é a grande festa anual da Bujinkan. É um evento com três dias de treinamento, que ocorre na data de aniversário do Soke, onde todos os grandes mestres apresentam o que vem ensinando pelo mundo a fora e são corrigidos pelo próprio Soke. Participamos dessa festa e Patrícia, também se apresentou para o Sakki Test e passou. Fiquei muito feliz por ela. O Sakki Test dela foi após o almoço do último dia de treinamento do Daikomyosai, e após isso o Soke retomou as atividades de treinamento. Durante uma explicação do Soke nesse último período, Sensei Nagato, que é um dos quatro principais Shihans Japoneses, me chamou para conversar e depois de uma rápida conversa sobre objetivos e metas e sobre a Bujinkan no Brasil ele me concedeu o oitavo dan. Meus objetivos estavam concluídos! Eu tinha conseguido mostrar do que o Ninjutsu do Espírito Santo - Brasil era feito. Eu estava feliz com o que havia conquistado.

Uma visita inesperada

Depois de todas as festas e comemorações era hora de descansar e nos preparar para voltar, mas ainda havia uma necessidade burocrática: Tínhamos que encaminhar a tramitação da minha nova graduação para o escritório da Bujinkan e isso seria praticamente impossível, pois esses trâmites são sempre executados aos domingos e nós não iríamos passar mais um domingo no Japão. Eu e Patrícia decidimos, no final da tarde do nosso último dia no Japão, dar uma passada sem compromisso no escritório da Bujinkan, para arriscar na sorte de encontrar alguém que pudesse nos ajudar. Era uma terça-feira e fazia muito frio. Devia ser aproximadamente umas seis horas da tarde, horário que representa um período noturno nessa época do ano no Japão. Batemos na porta do escritório da Bujinkan. A princípio nada aconteceu, porém as luzes estavam acessas e resolvemos insistir. Ao insistirmos ouvimos uma voz lá de dentro respondendo em japonês, “...por favor, entrem...”. Abrimos a porta e nos deparamos com ninguém menos que o próprio Soke. Ele estava sentado no chão rodeado por seus animais de estimação e suas tigelas de comida. Aparentemente abrindo correspondências. Desculpamos-nos pelo incomodo e com a limitação do idioma nos apresentamos dizendo o motivo de estarmos ali. O Phd. Dr. Hatsumi, o herdeiro da tradição milenar, fundador da Bujinkan, condecorado mundialmente pelos seus feitos em prol das artes marciais e oficialmente reconhecido como patrimônio histórico e cultural vivo do Japão, recebeu-nos com uma simplicidade ímpar. Recebeu nossa tramitação, nos proporcionou um breve tour pelo seu escritório, mostrou-nos sua coleção de fotos com personalidades famosas desde atores hollywoodianos, presidentes de países como os EUA e até mesmo de alguns pontífices do Vaticano. Após essa tremenda chave de ouro em nossa viagem ao Japão aquele “velhinho” simpático nos presenteou com duas mexericas para cada (eu e Patrícia) e em bom e perfeito português se despediu de nós com um sonoro “BOA NOITE”. De todas as conquistas e reconhecimentos que tive, tenho certeza que o que irá permanecer em minhas recordações com um carinho muito grande são aquelas duas mexericas.

Essas minhas experiências me fizeram compor uma ode ao “Guerreiro Divino”: 

Simples e soberano 
É o coração do verdadeiro guerreiro. 
Quando lhe é exigido
É capaz de impressionar a todos
Com a magistral eficiência de seus movimentos
Ou com a simplicidade e pureza de seu caráter
Sua simplicidade seria uma mascara?
Sua majestade seria sua alcunha?
Não importa.
Simples e soberano 
É o coração do verdadeiro guerreiro.